As Capitanias do Brasil Contemporâneo:
Como a concentração de terras é motor da desigualdade social brasileira
ABSTRATO:
Este estudo em Sociologia do Desenvolvimento busca explorar as profundas raízes históricas e econômicas da desigualdade de renda e apropriação de terras, com ênfase na América Latina, por meio da análise de teorias sociológicas, econômicas e históricas. Utilizando a fórmula de Shaikh (2016) para a desigualdade de renda e referenciando a acumulação primitiva de Marx, Karl (1867), a brutalidade das expulsões econômicas de Sassen, Saskia (2014), as análises de terra e poder de Oliveira, Gustavo de L.T. (2003), bem como estudos sobre a Guerra do Paraguai e o papel do Estado na apropriação de terras por Bethell, Leslie (1996) e Grajales, Jacobo (2013), o estudo oferece uma visão abrangente das interconexões entre colonialismo, racismo, apropriação de terras e desigualdade econômica.
O ponto de partida é a “Acumulação Primitiva” de Marx (1867), que estabelece a base para entender como as estruturas econômicas e sociais criadas durante o período colonial continuaram a influenciar as relações raciais e a distribuição de terras. Complementando isso, Sassen (2014) em “Expulsions” mostra como a globalização e economias modernas exacerbam as desigualdades através de mecanismos brutais de exclusão, essenciais para entender a configuração contemporânea da propriedade e desigualdade.
O papel da terra e sua concentração nas mãos de poucos são aprofundados pelos estudos de Oliveira (2003) sobre a regularização fundiária no Brasil e o ‘land grabbing’ global, e Grajales (2013) em seu estudo sobre o envolvimento estatal, apropriação de terras e contrainsurgência na Colômbia. Ambos demonstram como práticas históricas de apropriação e concentração de terras são perpetuadas em políticas contemporâneas, moldando as dinâmicas de poder e desigualdade.
Bethell (1996), com sua análise da Guerra do Paraguai, oferece um caso particularmente ilustrativo das consequências de conflitos militares e políticas estatais sobre a distribuição de terras e estruturas sociais. Combinando isso com a fórmula de Shaikh (2016) para desigualdade de renda, este estudo estende a compreensão da luta entre trabalho e capital para o contexto latino-americano, destacando como as estruturas de propriedade, amplificadas por sistemas financeiros, perpetuam desigualdades econômicas e sociais.
Este abstrato sintetiza como a interação entre colonialismo, racismo, políticas estatais e dinâmicas econômicas influenciam persistentemente a distribuição de terras e a desigualdade de renda. Ao reunir estas diversas perspectivas teóricas e empíricas, o estudo visa contribuir para uma compreensão mais complexa e matizada das raízes e perpetuação da desigualdade na América Latina e além.
PERGUNTA TEÓRICA:
“Como a acumulação de capital, a expropriação de terras e a luta pelo poder territorial têm historicamente configurado as desigualdades socioeconômicas e raciais, especialmente na América Latina, e quais são suas implicações contemporâneas?”
Acumulação de Capital, Expropriação e a Terra Como Poder
A história econômica e social do capitalismo é profundamente marcada por processos de acumulação de capital, expropriação e a centralidade do poder da terra. Estes processos não são apenas eventos históricos, mas fundamentos estruturais que moldam as dinâmicas contemporâneas de poder, desigualdade e conflito. A compreensão desses fenômenos é essencial para analisar as relações econômicas e sociais no mundo atual, especialmente ao considerar o legado do colonialismo e do racismo na formação de estruturas socioeconômicas na América Latina e em outras regiões previamente colonizadas.
A acumulação de capital, conforme descrito por Karl Marx, refere-se ao processo pelo qual o capital é investido para gerar mais capital, frequentemente resultando na concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos. Este processo não ocorreu de forma pacífica ou linear, mas sim através de uma série de expropriações violentas, muitas vezes justificadas por uma lógica racializadora e colonizadora. A “acumulação primitiva”, uma fase histórica crucial identificada por Marx, destaca como a expropriação de terras, a escravidão e a colonização foram fundamentais para o surgimento do capitalismo moderno.
Saskia Sassen, em seu trabalho sobre expulsões, expande a compreensão de como as dinâmicas modernas de acumulação continuam a se manifestar através da expulsão de pessoas de seus meios de subsistência, da expropriação de terras e da degradação ambiental. Sassen argumenta que a brutalidade dessas expulsões é uma característica inerente e contínua do sistema econômico global, redefinindo constantemente as fronteiras do pertencimento e da marginalização.
A terra, como elemento central desta discussão, transcende seu papel como mero recurso econômico. É uma fonte de poder, identidade e resistência. Os estudos sobre apropriação de terras na América Latina, como os de Gustavo de L.T. Oliveira e Jacobo Grajales, demonstram como a terra foi e continua sendo um campo de luta intensa, onde as dinâmicas de poder colonial e pós-colonial se manifestam e se reproduzem. A terra é um símbolo de poder, uma fonte de riqueza e um palco para conflitos e negociações.
Portanto, a análise da acumulação de capital, expropriação e o poder da terra revela uma complexa teia de relações e conflitos. Este estudo se propõe a desvendar como esses processos se entrelaçam historicamente e continuam a influenciar as sociedades contemporâneas, especialmente no contexto da América Latina, uma região marcada pela violência da colonização, pela persistência de estruturas raciais e econômicas desiguais e pela luta contínua por direitos e reconhecimento. Ao entender estes fenômenos, podemos começar a desvendar as raízes profundas da desigualdade e da luta pela terra e pelo poder em um mundo cada vez mais globalizado e polarizado.
Acumulação Primitiva de Marx: A acumulação primitiva é a precursora do capitalismo moderno, caracterizada pela expropriação de terras, escravidão e colonização, fundamentando as desigualdades socioeconômicas contemporâneas.
- A relação entre a acumulação primitiva e a formação de uma classe proletária despossuída.
A acumulação primitiva, conforme delineada por Karl Marx em sua obra seminal “O Capital”, refere-se ao processo histórico pré-capitalista que desencadeou e facilitou a emergência do capitalismo industrial. Este fenômeno é caracterizado pela separação forçada dos produtores diretos, especialmente os camponeses, de seus meios de subsistência, notavelmente a terra. Esta separação resultou na formação de uma classe proletária que, despossuída de meios próprios de produção, foi compelida a vender sua força de trabalho para sobreviver. O entendimento desse processo não só fornece uma janela para as origens do sistema capitalista, mas também para as dinâmicas de poder, desigualdade e conflito que persistem no mundo contemporâneo.
Historicamente, a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa foi marcada por uma série de reformas legais e atos de violência, como os “Cercamentos” na Inglaterra. Estas ações foram cruciais na privatização das terras comunais, transformando-as em propriedade privada para a agricultura capitalista e a criação de ovelhas. Este movimento não apenas despojou os camponeses de suas terras ancestrais, mas também os deslocou em massa, criando uma população crescente de despossuídos. Estes indivíduos, agora sem acesso à terra e aos meios tradicionais de subsistência, formaram as primeiras ondas de uma classe trabalhadora urbana, prontos para serem absorvidos pela nascente indústria capitalista.
A formação da classe proletária é um fenômeno diretamente ligado à despossessão e dependência criadas pela acumulação primitiva. Com a perda de acesso à terra e aos meios de subsistência, os ex-camponeses tornaram-se proletários. Esta nova classe de trabalhadores não possuía meios de produção e, portanto, sua sobrevivência dependia inteiramente da venda de sua força de trabalho em troca de salários. Este processo não só consolidou um mercado de trabalho para o capitalismo emergente, mas também redefiniu as relações sociais e econômicas, estabelecendo uma divisão clara entre os proprietários do capital e os trabalhadores.
A transformação das relações de produção e a consolidação do mercado de trabalho foram acompanhadas por mudanças legislativas e repressivas, como os “Atos dos Pobres” na Inglaterra. Essas leis foram implementadas para controlar e disciplinar a nova classe trabalhadora, ilustrando como o Estado desempenhou um papel ativo na consolidação da ordem capitalista. Este período foi caracterizado por um aumento da repressão e controle sobre a população despossuída, com o objetivo de manter a ordem social e econômica emergente.
O fenômeno da acumulação primitiva não foi, contudo, restrito à Europa. Foi um processo global, intensificado pelo colonialismo e a escravidão. A conquista e pilhagem de terras nas Américas, África e Ásia e a subjugação de seus povos foram cruciais para o capitalismo europeu. O processo de acumulação de capital na Europa foi, em grande parte, alimentado pelos recursos e pela exploração de outras regiões do mundo, configurando uma dinâmica global de desigualdade e exploração que ecoa até os dias de hoje.
As divisões e desigualdades estabelecidas durante o período de acumulação primitiva têm repercussões duradouras. A desigualdade no acesso à terra e aos recursos continua a ser uma questão central em muitas sociedades. Além disso, a forma como o capitalismo se desenvolveu resultou em uma concentração extrema de riqueza e poder, perpetuando ciclos de pobreza e dependência. As marcas deixadas pela acumulação primitiva são visíveis nas estruturas socioeconômicas contemporâneas e nas persistentes lutas pela terra e pelo reconhecimento.
Alguns teóricos argumentam que processos semelhantes à acumulação primitiva continuam ocorrendo no capitalismo contemporâneo, referindo-se a eles como “acumulação por despossessão”. Esta noção sugere que práticas como a privatização de bens comuns, a financeirização da natureza, e a expropriação contínua de terras são manifestações modernas do mesmo impulso de acumulação que caracterizou o surgimento do capitalismo. Estes processos refletem a persistência de dinâmicas de poder e exploração, onde a acumulação de capital continua a ser priorizada em detrimento dos direitos e do bem-estar das populações.
As lutas por terra e os movimentos sociais em todo o mundo refletem a resistência contínua contra a desigualdade e a despossessão. Eles buscam não apenas reverter as injustiças históricas, mas também propor alternativas ao modelo capitalista dominante. Estas lutas são testemunhas da busca contínua por sistemas que sejam equitativos, sustentáveis e justos, reconhecendo a terra não apenas como um recurso econômico, mas também como um espaço vital para a identidade, a comunidade e a vida.
Em conclusão, a relação entre a acumulação primitiva e a formação de uma classe proletária despossuída é um tópico complexo que abrange uma ampla gama de fenômenos históricos, econômicos e sociais. A compreensão desses fenômenos é crucial para entender as origens e a persistência das desigualdades socioeconômicas e raciais. Ao examinar a acumulação primitiva e suas implicações contemporâneas, torna-se evidente a necessidade de uma análise crítica e reflexiva das estruturas e sistemas que moldam nosso mundo, bem como a importância de resistir e buscar alternativas para um futuro mais justo e igualitário.
- Como a lógica colonial de expropriação se perpetua em práticas econômicas modernas.
A lógica colonial de expropriação, fundamentada na dominação e na apropriação de terras, pessoas e recursos, não se extinguiu com o fim formal do colonialismo. Ao contrário, ela se metamorfoseou, adaptando-se às estruturas e necessidades do capitalismo moderno. Esta perpetuação é evidente em várias práticas econômicas contemporâneas que refletem os padrões históricos de desigualdade, dominação e expropriação.
Primeiramente, a lógica de expropriação colonial persiste nas modernas aquisições de terra, muitas vezes referidas como “land grabbing”. Este fenômeno ocorre em grande escala, especialmente em países em desenvolvimento, onde corporações transnacionais, governos estrangeiros e investidores privados adquirem vastas extensões de terras. Embora muitas vezes justificado sob o pretexto de desenvolvimento ou segurança alimentar, o land grabbing continua a deslocar comunidades, destruir modos de vida locais e aprofundar a desigualdade. Este processo é reminiscente da apropriação de terras durante o período colonial, onde a terra era vista como um recurso a ser explorado para o benefício das potências coloniais.
Além disso, a expropriação se manifesta na exploração de recursos naturais. A extração de minérios, petróleo e outros recursos segue uma lógica que prioriza o lucro em detrimento das comunidades locais e do meio ambiente. Este modelo de desenvolvimento extrativista é uma continuação direta das práticas coloniais, onde os recursos dos territórios colonizados eram vistos como insumos para as metrópoles. Atualmente, embora os atores e contextos possam ter mudado, a dinâmica fundamental de exploração e desigualdade permanece.
A financeirização da natureza é outra forma pela qual a lógica colonial se perpetua. Mecanismos como créditos de carbono, patentes de biodiversidade e mercados de commodities tratam o mundo natural como um ativo financeiro, muitas vezes ignorando os direitos e a soberania dos povos indígenas e comunidades locais. Esta abordagem transforma a natureza em uma série de commodities a serem compradas, vendidas e exploradas, perpetuando uma visão de mundo que prioriza o lucro sobre a sustentabilidade e a equidade.
A precarização do trabalho e a desregulamentação dos mercados de trabalho também refletem a continuidade das práticas de expropriação. A busca incessante por mão de obra barata e flexível leva a condições de trabalho que muitas vezes são comparáveis às dos tempos coloniais, caracterizadas pela exploração intensa, falta de direitos e segurança. Trabalhadores em várias partes do mundo enfrentam condições precárias, reminiscentes das estruturas de trabalho forçado que eram prevalentes nas economias coloniais.
Essas práticas são sustentadas por uma ordem econômica global que perpetua as desigualdades entre o Norte Global e o Sul Global. As relações econômicas internacionais, muitas vezes caracterizadas por dívidas insustentáveis, comércio desigual e fluxos financeiros ilícitos, refletem e reforçam desigualdades que são herdeiras diretas da ordem colonial. Os países anteriormente colonizados muitas vezes se encontram em posições subordinadas, com suas economias orientadas para satisfazer as necessidades das economias mais avançadas.
Em resumo, a lógica colonial de expropriação se perpetua em práticas econômicas modernas de várias maneiras. Seja através da aquisição de terras, da exploração de recursos, da financeirização da natureza ou da precarização do trabalho, as sombras do colonialismo ainda permeiam a economia global. Reconhecer e desafiar essas continuidades é fundamental para construir um mundo mais justo e igualitário, onde as relações econômicas sejam baseadas na equidade, sustentabilidade e respeito aos direitos de todas as pessoas e comunidades.
Expulsões de Saskia Sassen: As expulsões econômicas e sociais são características inerentes ao sistema econômico global, redefinindo as fronteiras do pertencimento e marginalização.
- Análise de como a globalização moderna exacerbou a expropriação e desigualdade.
A análise de Saskia Sassen em “Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy” oferece um olhar penetrante sobre como a globalização moderna não apenas perpetua, mas também intensifica os processos de expropriação e desigualdade. Sassen argumenta que, sob a superfície de uma economia global interconectada e aparentemente homogênea, existem dinâmicas brutais de exclusão e despossessão que afetam milhões de pessoas e ecossistemas ao redor do mundo. Ela identifica como a globalização moderna e suas estruturas associadas — mercados financeiros, corporações transnacionais, tratados de comércio e tecnologia — transformaram as formas de expropriação e aprofundaram as desigualdades sociais e econômicas.
Um dos aspectos centrais da análise de Sassen é a transformação do território e da propriedade. Na globalização moderna, a terra não é apenas um recurso produtivo; torna-se um ativo financeiro significativo. A terra e os imóveis são frequentemente alvo de investimentos especulativos, levando a uma nova onda de “cercamentos” que deslocam comunidades e alteram paisagens. Esse fenômeno é visível desde as cidades globais, onde a especulação imobiliária eleva o custo de vida e expulsa residentes de longa data, até áreas rurais e florestais, onde a aquisição de terras para agricultura, mineração e projetos de energia desloca populações e destrói ecossistemas.
Além disso, Sassen destaca a crescente financeirização da economia global como um catalisador da expropriação. A financeirização transforma tudo, desde commodities básicas até serviços públicos e a própria natureza, em instrumentos financeiros negociáveis. Este processo muitas vezes prioriza o lucro em curto prazo para investidores distantes em detrimento das necessidades e direitos das comunidades locais. O resultado é um aumento na volatilidade e na insegurança para muitos, enquanto uma pequena elite acumula riquezas imensas.
A globalização também reformulou as cadeias de suprimentos e a produção, muitas vezes resultando em uma “corrida para o fundo” em termos de direitos trabalhistas e ambientais. Empresas buscam constantemente locais onde podem maximizar lucros através de salários mais baixos e regulamentações ambientais e sociais menos rigorosas. Isso leva a uma precarização do trabalho e a uma exploração intensificada dos recursos naturais, reproduzindo e exacerbando as desigualdades.
Outro aspecto relevante na obra de Sassen é o papel do Estado e das políticas neoliberais na facilitação da expropriação. As políticas de desregulamentação, privatização e cortes em serviços sociais, muitas vezes promovidas em nome da eficiência e do crescimento, têm frequentemente o efeito de despossuir as populações mais vulneráveis e concentrar ainda mais a riqueza e o poder. Isso é particularmente evidente em contextos de austeridade e ajuste estrutural, onde as redes de segurança social são desmanteladas, agravando a pobreza e a exclusão.
Em suma, a análise de Sassen sobre a globalização moderna revela como processos econômicos contemporâneos, longe de serem neutros ou universalmente benéficos, são intensamente contestados e muitas vezes violentos. A globalização exacerbou a expropriação e a desigualdade, reformulando e ampliando as dinâmicas de poder que privilegiam uma elite global enquanto marginalizam grandes segmentos da população mundial. Esta compreensão é crucial para desafiar as narrativas dominantes sobre a globalização e para buscar alternativas mais justas e equitativas.
- O papel da violência e da legalidade na perpetuação das expulsões.
Sassen articula uma tese incisiva sobre o papel da violência e da legalidade na perpetuação das expulsões, elementos que são fundamentais para compreender a dinâmica das desigualdades e expropriações no contexto da globalização moderna. Ela argumenta que a violência e a legalidade, longe de serem fenômenos opostos, muitas vezes trabalham juntos para facilitar e legitimar as expulsões e a despossessão.
Sassen observa que a violência é uma força visível e direta na expulsão de pessoas de suas terras, lares e meios de subsistência. Essa violência pode assumir várias formas, desde a força física direta, como despejos forçados e repressão de protestos, até formas mais indiretas, como a destruição ambiental que desloca comunidades e arruína modos de vida. A violência é frequentemente perpetrada ou facilitada pelo Estado, em aliança com interesses corporativos e elites locais, em nome do desenvolvimento, da segurança ou da eficiência econômica.
No entanto, a legalidade desempenha um papel igualmente importante na perpetuação das expulsões. Sassen argumenta que a violência da expulsão é muitas vezes enquadrada, facilitada e legitimada por leis e regulamentos. A legalização das expulsões ocorre através de uma variedade de mecanismos, como leis de propriedade que favorecem a aquisição corporativa de terras, reformas legislativas que facilitam os investimentos estrangeiros, ou políticas urbanas que priorizam o desenvolvimento de alto padrão em detrimento das comunidades existentes. Mesmo as práticas que parecem brutais e desumanas podem ser totalmente sancionadas e protegidas pela lei.
A tese de Sassen sugere que a legalidade confere uma aparência de legitimidade e normalidade às expulsões, mascarando a violência subjacente e dificultando a resistência. As pessoas que são despejadas de suas terras ou que perdem seus meios de subsistência podem ser vistas como desafortunadas, mas inevitáveis vítimas do progresso legal e econômico, em vez de vítimas de uma injustiça flagrante. Isso torna mais difícil para as comunidades deslocadas reivindicarem seus direitos ou mobilizarem apoio.
Além disso, Sassen destaca que a legalidade não é estática, mas é constantemente reformulada para atender aos interesses do capital e do poder. Leis e políticas são frequentemente alteradas para facilitar novas formas de aquisição e especulação, muitas vezes sob o disfarce de reforma ou inovação. Isso significa que a luta contra as expulsões e a despossessão não é apenas uma questão de enfrentar a violência direta, mas também de desafiar e reformar os sistemas legais que permitem e perpetuam essa violência.
A tese de Sassen sobre o papel da violência e da legalidade na perpetuação das expulsões destaca como esses dois elementos estão intrinsecamente ligados e são fundamentais para entender as dinâmicas de desigualdade e despossessão no mundo moderno. Ela nos chama a reconhecer e desafiar as formas ocultas e normalizadas de violência que são muitas vezes escondidas sob a superfície da legalidade e do progresso econômico. Ao fazer isso, ela contribui para uma compreensão mais profunda e crítica das estruturas de poder e injustiça que moldam o nosso mundo.
Terra como Poder e Luta: A terra é mais do que um recurso econômico; é um campo de luta intensa, simbolizando poder e resistência.
- A persistência de estruturas coloniais na apropriação e controle de terras.
A terra transcende seu papel como mero recurso econômico e se revela como um campo de luta intensa, carregando em si as marcas de poder e resistência. Esta noção é central para entender como as estruturas coloniais persistem na apropriação e controle de terras, moldando as dinâmicas contemporâneas de desigualdade e conflito. Durante o colonialismo, a terra foi a principal avenida pela qual poder e riqueza foram exercidos e acumulados, frequentemente através da desapropriação violenta e do deslocamento de povos indígenas e locais. Essas práticas não apenas garantiam ganhos materiais, mas também reforçavam a dominação e subjugação de vastas populações.
No contexto pós-colonial, as heranças dessas estruturas não desapareceram; ao invés disso, elas se adaptaram e se manifestaram sob novas formas. As elites agrárias, muitas das quais têm suas origens nos tempos coloniais, ainda dominam extensas porções de terra, protegidas por leis e políticas que perpetuam a concentração de terras e poder. Além disso, o fenômeno da expropriação de terras continua, muitas vezes sob o pretexto de desenvolvimento econômico ou extração de recursos, levando ao deslocamento e marginalização de comunidades indígenas e rurais. Estas práticas refletem e perpetuam as lógicas coloniais de dominação e exploração.
A resistência contra essas formas de desposseção é evidente em lutas por reconhecimento de direitos à terra, movimentos de reforma agrária e conflitos territoriais. Estas lutas são testemunhos da contínua busca por justiça e autodeterminação, refletindo um desafio direto às estruturas de poder que se originaram no colonialismo e persistem em várias formas. Entender a terra como um espaço contestado e carregado de significado é crucial para reconhecer a profundidade das desigualdades atuais e a vitalidade da resistência contínua, abrindo caminho para uma relação mais justa e equitativa com a terra e entre as pessoas.
- O impacto da concentração de terras nas dinâmicas de poder e na resistência comunitária, especialmente em contextos pós-coloniais.
A concentração de terras é uma manifestação crítica da desigualdade, afetando profundamente as dinâmicas de poder e fomentando a resistência comunitária, especialmente em contextos pós-coloniais. Nos períodos coloniais, a apropriação de terras por colonizadores não apenas despojou as populações indígenas de seus recursos e territórios ancestrais, mas também estabeleceu estruturas de poder que continuam a influenciar relações socioeconômicas modernas. A persistência dessa concentração de terras perpetua a marginalização econômica e social de comunidades inteiras, mantendo-as em um ciclo de pobreza e dependência.
No cenário pós-colonial, a concentração de terras frequentemente se mantém nas mãos de elites agrárias ou é agravada pela entrada de corporações multinacionais e investidores estrangeiros. Esta realidade cria uma disparidade significativa em termos de acesso a recursos, oportunidades econômicas e autonomia. As comunidades que uma vez dependiam da terra para sua subsistência e cultura encontram-se agora à margem, muitas vezes enfrentando a perda de seus modos de vida tradicionais e a degradação ambiental.
Essa concentração de terras não apenas perpetua a pobreza e a desigualdade, mas também cria tensões e conflitos, pois as comunidades lutam contra a expropriação e pela reafirmação de seus direitos. A resistência comunitária toma várias formas, desde movimentos de reforma agrária e lutas legais por reconhecimento de direitos à terra até protestos e ações diretas contra corporações e políticas governamentais. Esses movimentos de resistência não são apenas confrontos sobre recursos; eles são lutas pela dignidade, identidade e autonomia.
Portanto, a concentração de terras é um assunto crítico nas dinâmicas de poder pós-coloniais, afetando diretamente a vida e o bem-estar de comunidades. É um símbolo de desigualdade persistente e um campo de luta contínua. Reconhecer e abordar a concentração de terras é fundamental para construir sociedades mais justas e equitativas, onde as comunidades têm controle sobre os recursos que fundamentam sua existência e cultura.
Desigualdade e Estrutura Racial:
O colonialismo e o racismo estruturaram de maneira duradoura as relações socioeconômicas, influenciando a distribuição de terras e a acumulação de capital.
- Como o racismo se manifesta nas políticas de terra e na acumulação econômica.
O colonialismo e o racismo são forças entrelaçadas que historicamente moldaram e continuam a influenciar as relações socioeconômicas, a distribuição de terras e a acumulação de capital. Essas estruturas não apenas estabeleceram padrões de dominação e exploração durante o período colonial, mas também deixaram legados duradouros que permeiam as políticas de terra e as práticas econômicas contemporâneas. Leslie Bethell, em sua análise da Guerra do Paraguai, ilustra como o colonialismo e os conflitos regionais influenciaram a distribuição territorial e as relações de poder na América Latina, um fenômeno que reflete a persistência de estruturas coloniais em diversas formas.
O racismo, como componente chave dessas estruturas, manifesta-se nas políticas de terra através de práticas discriminatórias que frequentemente desfavorecem grupos indígenas, negros e outras minorias étnicas. Estas políticas não apenas perpetuam a desigualdade no acesso e controle da terra, mas também em como os recursos são distribuídos e quem beneficia da acumulação de capital. A terra, muitas vezes concentrada nas mãos de elites que são herdeiras das estruturas coloniais, continua a ser uma fonte de poder econômico e influência, mantendo assim desigualdades raciais e sociais.
A acumulação econômica, impulsionada por um sistema que historicamente favoreceu a exploração de determinados grupos em detrimento de outros, continua a refletir desigualdades raciais. Isso é evidente nas disparidades de riqueza, oportunidades e acesso a serviços básicos. As comunidades que foram marginalizadas e despojadas de seus recursos durante o colonialismo muitas vezes continuam em posições vulneráveis, lutando contra formas modernas de expropriação e marginalização.
O trabalho de Bethell ressalta a importância de entender a história colonial para compreender as disparidades contemporâneas. As guerras e conflitos que moldaram a América Latina são reflexo das tensões e divisões que foram instigadas e exacerbadas por práticas coloniais e racistas. Assim, a luta por terra, justiça e igualdade econômica é também uma luta contra o legado persistente do colonialismo e racismo, exigindo uma revisão crítica e uma ação corretiva nas políticas e práticas atuais para assegurar uma distribuição mais justa e equitativa de recursos e oportunidades.
- A relação entre liberação dos escravos, falta de acesso à terra e perpetuação da marginalização.
A liberação dos escravos foi uma virada histórica em muitas sociedades, inclusive no Brasil, mas a subsequente falta de acesso à terra para os recém-libertos perpetuou uma marginalização que ressoa até hoje. A Guerra do Paraguai, como detalhado por Leslie Bethell, foi um conflito significativo que moldou a geopolítica e as estruturas socioeconômicas da região, influenciando diretamente a questão da terra e a marginalização dos grupos vulneráveis, incluindo os ex-escravos.
Quando a escravidão foi abolida, muitos ex-escravos foram deixados sem acesso a recursos ou meios para sustentar uma vida independente. No Brasil, a terra continuou a ser concentrada nas mãos de uma elite agrária, uma estrutura que foi em parte solidificada através dos conflitos e realinhamentos territoriais pós-Guerra do Paraguai. Esta falta de redistribuição significativa de terra deixou os ex-escravos em uma “liberdade” nominal, mas efetivamente os manteve em ciclos de pobreza e dependência econômica, muitas vezes trabalhando em condições pouco melhores do que durante a escravidão.
A Guerra do Paraguai também exacerbou a concentração de terras, pois as consequências do conflito levaram à apropriação de territórios e redefinição de fronteiras. Os territórios disputados e eventualmente anexados contribuíram para uma paisagem agrária já desigual, onde poucos detinham muito e muitos permaneciam sem nada. Para os ex-escravos e suas comunidades, isso significava uma continuação de lutas por reconhecimento, direitos e um lugar na sociedade que fosse além da marginalização imposta.
A marginalização dos ex-escravos não foi apenas econômica, mas também social e cultural. Sem terra, muitos perderam um elemento crucial de autonomia e identidade. No Brasil pós-escravidão, as promessas de integração plena na sociedade permaneceram em grande parte não realizadas, com os ex-escravos e suas comunidades enfrentando barreiras persistentes ao progresso social e econômico.
Formulação de Shaikh sobre Desigualdade de Renda: A estrutura econômica, especialmente apropriação de ativos e a luta entre capital e trabalho, é central na explicação das desigualdades de renda.
- Aplicação da fórmula de Shaikh para entender a distribuição de renda e riqueza na América Latina.
Anwar Shaikh, proeminente na tradição do Marxismo Analítico, propõe uma visão detalhada sobre a natureza e as consequências da desigualdade na era moderna, ancorando sua argumentação na interação contínua entre capital e trabalho e o papel do capital financeiro. Segundo ele, a tradição clássica percebe a desigualdade como uma consequência direta da luta contínua entre capital e trabalho pela determinação de salários e produtividade, bem como pela influência do capital financeiro e sua propensão a criar bolhas e instabilidade. Contrário à ideia de que mudanças na desigualdade são inevitáveis, Shaikh sugere que são antes resultados políticos, susceptíveis a serem modificados ou exacerbados dentro de um espectro determinado pela rentabilidade do capital.
Shaikh avança ao argumentar que a dinâmica de poder entre capital e trabalho, juntamente com o grau de liberdade permitido à financeirização, desempenha um papel crucial na perpetuação da desigualdade. Ele observa que, quando o capital financeiro opera sem restrições significativas, torna-se um vetor poderoso de desigualdade, concentrando riqueza através de bolhas financeiras e apropriação de excedentes econômicos.
Para analisar empiricamente essa relação, Shaikh (em “Income Distribution, Econophysics and Piketty”) utiliza uma série de indicadores econômicos e propõe uma fórmula para explicar a desigualdade de renda nos Estados Unidos. A participação dos lucros, a financeirização da renda e a distribuição de ativos de propriedade são identificados como determinantes-chave da desigualdade. Ele argumenta que quando a participação dos lucros ou a financeirização da renda aumentam, a desigualdade tende a seguir o mesmo caminho. Da mesma forma, a concentração de ativos de propriedade nas mãos de poucos intensifica a desigualdade de renda.
A fórmula de Shaikh para desigualdade de renda, σpp\=ϕσp⋅F, considera (σpp) como a proporção da renda proveniente da propriedade em relação à renda pessoal total; (σp) como a proporção do excedente líquido em relação ao valor adicionado, refletindo a luta entre trabalho e capital; (F) como a proporção da renda da propriedade ao excedente líquido, mostrando o grau de amplificação das rendas através da pirâmide de ativos financeiros; e (ϕ) como a proporção da renda pessoal total em relação ao valor adicionado total.
Shaikh destaca que a era neoliberal testemunhou um aumento dramático na proporção de renda proveniente da propriedade na renda pessoal total, atribuível a um aumento na proporção do excedente líquido e um aumento ainda mais pronunciado na financeirização da renda. Esses fatores, em conjunto, quase dobraram a proporção da renda proveniente de propriedade, indicando um acentuado aumento na desigualdade de renda.
A formulação econômica de Shaikh oferece uma maneira de quantificar e entender melhor as dinâmicas de desigualdade no capitalismo, alinhando-se com a teoria marxista de que o capitalismo é inerentemente desigual devido à exploração do trabalho e à acumulação de capital. Essa perspectiva fornece insights importantes sobre os mecanismos subjacentes à desigualdade e oferece um quadro para compreender as possíveis intervenções para mitigar seus efeitos. Ao explorar essas variáveis e suas interações, Shaikh contribui para um entendimento mais profundo e nuanciado da desigualdade na era moderna, destacando a importância das políticas e estruturas econômicas na sua formação e persistência.
- Análise de como as estruturas de propriedade e renda refletem e perpetuam desigualdades históricas e contemporâneas.
A formulação de Anwar Shaikh sobre a desigualdade de renda oferece uma perspectiva analítica que pode ser aplicada ao entender a concentração de renda no Brasil, especialmente considerando a histórica concentração de terra nas mãos de elites predominantemente brancas. Segundo Shaikh, a desigualdade é em grande parte um resultado da relação entre a participação dos lucros (σp), a financeirização da renda (F), e a proporção de renda proveniente de propriedade na renda pessoal total (σpp). Esses elementos interagem dentro de um contexto marcado por histórias de colonização e escravidão, que no Brasil configuraram uma distribuição extremamente desigual de terra e, consequentemente, de capital.
Historicamente, as elites brancas brasileiras consolidaram vastas extensões de terra durante e após o período colonial, muitas vezes por meio de expropriação violenta e políticas discriminatórias. Essa concentração de terra não apenas garantiu a essas elites uma fonte significativa de riqueza e poder econômico, mas também estabeleceu uma base para a acumulação e perpetuação de capital ao longo das gerações. No contexto de Shaikh, a concentração de terra pode ser vista como um fator crucial que influencia a participação dos lucros (σp), uma vez que aqueles que controlam grandes extensões de terra estão em posição de gerar lucros substanciais, seja através da produção agrícola, arrendamento ou especulação imobiliária.
Além disso, a financeirização da renda (F) no Brasil tem sido influenciada pela concentração de terra e capital nas mãos de poucos. À medida que a economia se tornou mais financeirizada, os rendimentos de ativos financeiros, muitas vezes atrelados à terra e outros ativos imobiliários, tornaram-se cada vez mais concentrados. Isso exacerbou a desigualdade de renda, favorecendo aqueles que já possuíam riqueza e ativos significativos.
A desigualdade resultante é refletida na proporção de renda proveniente de propriedade na renda pessoal total (σpp), que tende a ser maior entre as elites detentoras de terras. Essa situação é agravada pela persistência de estruturas sociais e econômicas que privilegiam a população branca, refletindo legados coloniais e escravocratas. O resultado é uma sociedade em que a riqueza e o poder continuam concentrados, e as disparidades raciais e socioeconômicas são profundamente enraizadas.
Modelando a desigualdade no Brasil
Para complementar quantitativa e qualitativamente a tese sobre a desigualdade fundiária no Brasil, como apresentado no relatório da Oxfam, podemos considerar vários aspectos destacados pelo estudo que ilustram a extensão e as implicações dessa concentração de terras.
Complemento Quantitativo
Concentração de Terras: No Brasil, menos de 1% das propriedades controlam 45% da área rural. Este dado é um indicador potente da desigualdade fundiária que pode ser comparado com outras nações na América Latina, onde a desigualdade é ainda mais acentuada, como na Colômbia, onde 0,4% das propriedades detêm mais de 67% das terras produtivas.
Disparidade na Posse de Terra: Mais de 47% dos estabelecimentos agropecuários no Brasil possuem menos de 10 hectares e ocupam apenas cerca de 2,3% da área rural total do país.
Acesso ao Crédito Agrícola: As grandes propriedades, com mais de 1.000 hectares, concentram 43% do crédito rural disponível, enquanto a vasta maioria dos pequenos agricultores acessa uma parcela significativamente menor desse recurso essencial.
Complemento Qualitativo
Impacto no Desenvolvimento Sustentável: A concentração extrema de terras está diretamente ligada a índices mais baixos de desenvolvimento humano nos municípios. Cidades com alta concentração de terras tendem a apresentar maiores taxas de pobreza e menor desenvolvimento humano, como é o caso de Correntina na Bahia, onde a pobreza atinge 45% da população rural.
Desigualdade de Gênero: Na questão fundiária, os homens controlam 87,32% dos estabelecimentos e 94,5% das áreas rurais, destacando uma desigualdade de gênero significativa no acesso à terra.
Produção de Alimentos: Apesar de possuírem pouca terra e acesso limitado a recursos, os pequenos produtores são responsáveis por mais de 70% dos alimentos consumidos no país, evidenciando sua importância para a segurança alimentar e a economia rural.
Variáveis do Modelo:
- σp (Participação dos Lucros): Estimaremos essa variável como a proporção da terra detida por grandes proprietários em relação à área total. Segundo a Oxfam, menos de 1% das propriedades detém cerca de 45% da área rural. Podemos usar 0.45 como uma estimativa para σp.
- F (Financeirização da Renda): Essa variável reflete o grau em que a renda do capital é ampliada por meios financeiros. Não temos dados exatos sobre a proporção da renda da propriedade ao excedente líquido no contexto específico do Brasil, mas podemos assumir que essa financeirização é significativa dada a natureza da economia agrária moderna e a prevalência de grandes operações agroindustriais. Vamos assumir um valor moderado de 0.6 para F.
- ϕ (Proporção da Renda Pessoal Total em Relação ao Valor Adicionado): Esta é a proporção da renda pessoal total em relação ao valor adicionado total. Na falta de dados específicos do Brasil, podemos considerar o valor mencionado por Shaikh de cerca de 67%, ou 0.67.
Fórmula:
Para criar um modelo utilizando a fórmula de Anwar Shaikh e os dados fornecidos pelo relatório da Oxfam, precisamos primeiro definir e estimar as variáveis conforme discutido anteriormente. Consideremos os seguintes passos e estimativas baseadas nos dados da Oxfam sobre a concentração de terras no Brasil:
Variáveis do Modelo:
σp (Participação dos Lucros): Estimaremos essa variável como a proporção da terra detida por grandes proprietários em relação à área total. Segundo a Oxfam, menos de 1% das propriedades detém cerca de 45% da área rural. Podemos usar 0.45 como uma estimativa para σp.
F (Financeirização da Renda): Essa variável reflete o grau em que a renda do capital é ampliada por meios financeiros. Não temos dados exatos sobre a proporção da renda da propriedade ao excedente líquido no contexto específico do Brasil, mas podemos assumir que essa financeirização é significativa dada a natureza da economia agrária moderna e a prevalência de grandes operações agroindustriais. Vamos assumir um valor moderado de 0.6 para F.
ϕ (Proporção da Renda Pessoal Total em Relação ao Valor Adicionado): Esta é a proporção da renda pessoal total em relação ao valor adicionado total. Na falta de dados específicos do Brasil, podemos considerar o valor mencionado por Shaikh de cerca de 67%, ou 0.67.
Agora, aplicamos a fórmula proposta por Shaikh:
𝜎𝑝𝑝=(𝜎𝑝×𝐹)/𝜙
Substituindo os valores estimados:
𝜎𝑝𝑝 = (0.45 × 0.60) / 0.67 =
𝜎𝑝𝑝 ≈ 0.270 / 0.67 ≈ 0.40299
Interpretação:
O valor de σpp de aproximadamente 0.403 indica que 40.3% da renda extra pessoal total pode ser atribuída à renda proveniente da propriedade, refletindo uma desigualdade significativa quando combinada com a alta concentração de terras e impactando na acumulação primária de capital. Esse resultado sugere que uma pequena porcentagem de grandes proprietários de terras captura uma grande parte da renda total gerada, contribuindo para uma alta desigualdade de renda.
Este modelo simplificado oferece uma visão inicial de como a concentração de terras pode afetar a distribuição de renda no Brasil, baseando-se na teoria de Shaikh e nos dados sobre a distribuição de terras da Oxfam. No entanto, para uma análise mais precisa, seria necessário obter dados mais específicos e detalhados sobre rendas de propriedades, excedente líquido e outras variáveis econômicas relevantes.
Dada a informação de que o índice de Gini para a concentração de renda agrícola no Brasil é de 0.87, que indica uma desigualdade extremamente alta, podemos revisitar e ajustar a análise anterior para refletir esse contexto. Este valor alto sugere que a renda derivada da agricultura é extraordinariamente concentrada, o que provavelmente é resultado direto da alta concentração de terras.
Revisão do Modelo:
1. Aumento da Concentração de Terras: Se (𝜎𝑝𝑝=(𝜎𝑝×𝐹)/𝜙) já reflete uma alta concentração de terras (45% da área rural nas mãos de menos de 1% dos proprietários), um Gini de 0.87 confirma que essa concentração está fortemente correlacionada com a concentração de renda agrícola. O índice pode ainda ser influenciado por práticas como monopólios, manipulação de preços e o poder político dos grandes proprietários.
2. Financeirização da Renda (F): A alta financeirização da renda agrícola pode estar contribuindo para o aumento da desigualdade, uma vez que permite que grandes proprietários de terras aumentem sua renda por meio de investimentos financeiros e outras fontes de renda não-laborais, como aluguéis e royalties. Com um Gini tão alto, é plausível que F também seja elevado, indicando que a renda da propriedade está sendo fortemente ampliada por mecanismos financeiros.
3. Influência no Índice de Gini: Com 𝜎𝑝𝑝=(𝜎𝑝×𝐹)/𝜙 representando uma grande parcela da renda pessoal proveniente de propriedade, e com ϕ mantido constante, o alto índice de Gini ilustra que a desigualdade de renda não é apenas resultado da concentração de terra, mas também de uma estrutura econômica que favorece a acumulação de capital em detrimento da maioria da população rural.
Análise: Dado o índice de Gini de 0.87, podemos concluir que:
- A Concentração Agrícola e a Desigualdade de Renda são Extremamente Altas: A desigualdade na distribuição de terras e renda agrícola no Brasil é uma das mais altas do mundo. Isso implica que a maioria dos rendimentos agrícolas está nas mãos de um pequeno grupo de proprietários de terras.
- Necessidade de Políticas de Reforma Agrária e Regulação Financeira: Para combater essa desigualdade, políticas como reforma agrária e regulamentações financeiras para controlar a especulação sobre terras e renda são essenciais. Essas políticas podem ajudar a redistribuir a terra e tornar os ganhos de capital mais equitativos.
- Efeito de Políticas Públicas sobre a Desigualdade: O governo tem um papel crucial a desempenhar na mitigação dessa desigualdade por meio de políticas que não apenas reformem a posse de terra, mas também melhorem o acesso ao mercado, crédito e tecnologia para pequenos agricultores.
CONCLUSÃO:
Conforme explorado através das perspectivas de Gustavo de L.T. Oliveira e os insights econômicos de Anwar Shaikh, entendemos que a apropriação e a concentração de terras no Brasil não são apenas vestígios históricos, mas sim dinâmicas ativas que continuam a moldar e reforçar as desigualdades socioeconômicas e raciais. Oliveira, em sua obra “Land Regularization in Brazil and the Global Land Grab”, ilustra vividamente como a regularização fundiária e a aquisição global de terras servem como mecanismos de poder que perpetuam estruturas de desigualdade arraigadas.
Estes processos não são isolados, mas estão intrinsecamente ligados a um legado complexo de colonialismo e racismo, que configura não só a América Latina mas também outras regiões do mundo. A terra, central nesse debate, transcende sua função econômica básica e emerge como um campo de poder e conflito, onde os ecos da expropriação colonial são ressoados em práticas contemporâneas de concentração de terras.
Através do modelo econômico proposto por Shaikh, que usa dados recentes sobre a distribuição de terras no Brasil, destacamos como a desigualdade é exacerbada pela concentração de terras e pela financeirização da economia rural. O índice de Gini extremamente alto na distribuição de renda agrícola revela uma divisão socioeconômica profunda que é continuamente ampliada pela acumulação de capital por uma pequena elite de proprietários de terras.
Assim, concluímos que a luta por terra e igualdade está profundamente conectada com a necessidade de reconhecimento e desmantelamento dos legados de desigualdade. Para enfrentar esses desafios, é essencial uma compreensão crítica das estruturas econômicas que sustentam a desigualdade, acompanhada de políticas e intervenções focadas na redistribuição e na justiça social.
O trabalho de Oliveira, complementado pelas análises de Shaikh e os dados da Oxfam, serve como um poderoso lembrete de que as lutas contemporâneas por justiça social e econômica são enraizadas em histórias de injustiças, e que avançar para um futuro mais equitativo exige um confronto direto com as injustiças do passado e do presente. A esperança para o futuro reside na capacidade de transformar esses desafios em oportunidades para construir sociedades mais justas e sustentáveis, onde a terra e seus recursos beneficiem todos, não apenas os poucos privilegiados.
BIBLIOGRAFIA:
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